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Búzio no JN

O som do mar ouve-se dentro da capela da Fortaleza na Póvoa de Varzim

No dia 22 de Fevereiro de 2024, O JN publicou uma entrevista, dentro do âmbito do programa do evento literário Correntes d’Escritas, sobre a instalação Búzio.

“Há uma programação que acompanha o debate literário do Correntes d’Escritas, que decorre na Póvoa de Varzim até domingo. A instalação sonora “Búzio”, do artista Helder Luís, acontece à margem do certame e permite ter a experiência de ouvir o som do mar dentro da capela da Fortaleza de Nossa Senhora da Conceição.”

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O livro “Sardinha” em destaque na última edição do jornal Expresso

Versão online do artigo.

O livro “Sardinha” foi destacado na última edição (#2652-25/8/23) do jornal Expresso. Um artigo do Ricardo Dias Felner.

Conhecemos mal a sardinha, tão mal que a comemos cedo demais e a desprezamos quando está magnífica — agora mesmo, entre agosto e setembro

Ricardo Dias Felner

Texto integral do artigo:

Se andarem pela zona sul da Póvoa de Varzim, pelas 21h, deverão ver homens solitários andando pelas ruas vazias com um balde na mão. A maioria dirige-se para a churrasqueira Coração do Bairro Sul que, por essa altura, já terá na esplanada outros homens e seus baldes. Muitos são da mesma família, conhecem-se há anos e há anos que cumprem a mesma rotina. 
Daí a minutos, começarão a estacionar ali várias carrinhas. Os homens dos baldes hão de partir, prolongando as conversas do snack-bar. Para onde navegará o mestre, hoje? Será que o peixe andará mais para sul, como ontem? Será que haverá quinhão, ao amanhecer? 
A pesca do cerco é uma aventura incerta, anónima e desconhecida. À maioria dos portugueses interessa o produto final. E, mesmo assim, é como um namoro estival precoce, entre maio e julho. Conhecemos mal a sardinha, tão mal que a comemos cedo demais, quando é um pauzinho seco, e a desprezamos quando está magnífica, entre agosto e setembro. Agora mesmo. 
Este ano, só nas últimas semanas ela tem aparecido nas bancas em todo o seu esplendor, com aquela camada leitosa entre a pele e a carne. Só agora ensopa o pão de gordura. Tragicamente, por estes dias muitas ficam por vender, tanto no mercado como nos restaurantes, e isto apesar de estarem quase a metade do preço a que se vendiam durante as grandes festas populares de Lisboa e Porto. 
Os homens dos baldes sabem disto, mas nada podem contra os ímpetos da nação. Não chegam ao foodie e ao influencer. Vivem longe das outras pessoas. Têm outros horários, andam noutros territórios, navegam noutras águas. Na Póvoa de Varzim, em Matosinhos, em Peniche, são uma tribo à parte. Homens na penumbra fumando, em silêncio, sem ninguém a quem contar a aventura da noite anterior e da que está por vir. A aventura da sardinha, da pesca de cerco. 
Mas há exceções. No dia 5 de agosto de 2019, o Coração do Bairro Sul teve uma visita inesperada. Atrás de uma máquina fotográfica estava um rapaz com cabelo em franjinha, mais habituado às ferramentas do iMac e do Adobe InDesign, da Fuji e da guitarra, do que a dornas e guinchos, a aladores e bússolas giroscópicas. Helder Luís, designer gráfico, artista de vários instrumentos, com exposições em fundações e publicações internacionais, apareceu no Coração do Bairro Sul vindo de outra vida. Antes de se meter num barco de pesca, preferia cavala a sardinha, o rio ao mar.
Algures em 2017, surgiu-lhe, contudo, uma oportunidade acidental. Estava a mudar de casa. Ia continuar como designer e artista freelancer, eventualmente trabalhando para os mesmos clientes, da Leya à Caixa Geral de Depósitos. Mas queria fazê-lo no campo. “Ia viver para o interior do país, perto de Arganil. Ia construir uma casa daí a uma semana. Até que vieram os incêndios de 2017. Arderam-me oliveiras centenárias, árvores de fruto. Eu e a minha mulher íamos fazer azeite, trabalhar na terra, tínhamos a vida orientada nesse sentido.” 
Nessa circunstância frágil, surgiram então dois convites importantes: um para a mulher, em Lisboa, outro para ele, no Porto. No seu caso, tratava-se de uma instalação em Serralves, sob a temática do mar. O desafio levá-lo-ia a embarcar pela primeira vez e, desde então, nunca mais parou. Nos quatro anos seguintes, andou em traineiras de norte a sul do país, sempre na pesca do cerco — no âmbito de uma residência artística patrocinada pela Câmara da Póvoa de Varzim. Tem previstos cinco projetos, mas o mais monumental deles é o que aqui se trata.

Um documento ímpar

O livro “Sardinha” é um livro de fotografia, mas não será, com certeza, um postalzinho de mar e gentes, dourado, céu azul e pôr do sol, filtros e luz artificial. “Sardinha” é um documento meticuloso sobre a mais portuguesa das artes de pesca e, porventura, sobre a mais ignorada. Sem etnografia de academia, nem neorrealismo primário, mas com as coisas como elas são. Quando é noite, quando o céu está cinzento e chove e troveja, as imagens são o que pode o obturador. Sem flash, sem Photoshop. São o que é tantas vezes a pesca: escura, tremida, balançada, incerta. 
E acresce que em “Sardinha” participaram os melhores. Pedro Salgado, um dos mais notáveis ilustradores científicos portugueses. Diana Feijó, do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA), que fez a revisão científica. E Álvaro Garrido, professor catedrático da Universidade de Coimbra, o maior especialista português vivo em história do mar e das pescas. 
Álvaro Garrido escreve, entre outras coisas, esta clarividência: “A pesca da sardinha é uma saga humana pouco mais do que invisível. Ocultada pelo imaginário épico que costumamos associar às pescas longínquas no Atlântico Norte e no Atlântico Sul (bacalhau e pescada), a sardinha só é objeto de lembrança quando, ciclicamente, há notícia de naufrágios e de vidas perdidas no mar, ou quando se reabrem debates efémeros em torno da escassez do recurso.”
E, no entanto, estamos a falar da mais importante das pescas portuguesas. Segundo dados de 2020, a pesca do cerco emprega 2046 pescadores e 138 barcos. De acordo com os dados fornecidos no livro, para o mesmo ano, foram capturadas 14,5 mil toneladas de sardinha, um volume extraordinário se tivermos em conta os meios, a técnica e o tempo do defeso, quase seis meses por ano. 

Para Helder Luís não há outra arte de pesca tão emocionante como esta. Em certos portos, como o de Peniche, ouve-se um tiro de partida e tudo. “Há quem lhe chame a corrida mais louca do mundo”, disse-me o artista plástico, que passou largas temporadas nesta cidade piscatória, ora nos barcos ora comendo e dormindo com as tripulações nos armazéns da lota local — por sinal a que mais sardinha movimenta no país, à frente da lota de Matosinhos.

Da noite para o dia

Ao contrário do que acontece na Póvoa de Varzim, onde se pesca de noite, em Peniche, pelas 14h, os barcos alinham-se no porto para largar. Depois, uma das traineiras — sempre o “Mestre Comboio” — faz soar a buzina e elas arrancam a todo o diesel, e há de haver um vencedor — sempre o “Mar Eterno”, um barco do Norte particularmente rápido. Fora o lado lúdico, quem ganha merece o reconhecimento dos pares, mas sobretudo faz melhor negócio. “Por regra, o primeiro a chegar ao banco, chega primeiro à lota e vende a sardinha mais cara.” 
Desde que partem até voltarem a terra é um contrarrelógio, um jogo do gato e do rato. O gato é o mestre do barco, figura-chave. O mestre decide sozinho em que águas vai largar a rede. E o mestre é a cara do barco. “Há mestres que saem de casa e já sabem para onde hão de ir, só com a intuição”, atesta Helder Luís. “Os mais velhos nem olham para os instrumentos, porque começaram sem eles. Pensam: ‘Ontem, o peixe andou por ali, amanhã vai andar por acolá. Hoje a corrente está assim, por isso…’” 
De todos os lobos do mar que Helder Luís conheceu, nenhum representa tão bem a posição como Agonia Torrão, 50 anos, do mítico “Deus Não Falta”. Agonia Torrão, pescador desde os 13 anos, nascido numa família pesqueira, é esse líder incontestado, por vezes duro e polémico, sempre disposto a mais uma corrida. O seu barco é tido como o campeão nacional da sardinha, mas também como o que melhor trata a sua tripulação, tanto a de mar como a de terra. 
De resto, usa todos os recursos para pescar mais, para faturar mais. Um deles é ajudar o IPMA nas suas pesquisas, durante o defeso. Outro são fruto da experiência e da liderança. O facto de o “Deus Não Falta” ter matrícula em Peniche, apesar de ser do Norte, por exemplo, não é um acaso, mas uma conveniência. É que, por lei, para se poder pescar em certos bancos, particularmente abundantes em fauna, como o das Berlengas, é preciso que a embarcação esteja aí registada. 
A tripulação de “Agonia Torrão” é tudo gente do Norte e a gente do Norte é especial. As traineiras mais aguerridas vêm das Caxinas, de Matosinhos, da Póvoa. “A malta do Sul diz que os do Norte, se pudessem, traziam água para terra. São muito aguerridos. Nem que o mar esteja a partir, eles vão sempre. São mais destemidos e ambiciosos. Têm menos paciência. Levam tudo à frente. É tudo boa gente, mas são muito competitivos e desestabilizam os portos por onde passam.”
Os barcos do Norte descem costa abaixo, se for preciso, na perseguição dos cardumes ou dos preços mais altos pagos em lota. A competição com outros barcos vai afrouxando à medida que navegam para sul, podendo navegar até Quarteira e Portimão. Quando os pescadores algarvios veem chegar barcos como o “Deus Não Falta” já sabem que a festa é deles. Nada a fazer, é deixar passar. 
As rivalidades acontecem, sobretudo, entre os barcos campeões. “Existe mesmo um ranking do dinheiro que fazem em lota”, concretiza Helder Luís, acrescentando: “Isto não significa que não se estabeleçam parcerias entre amigos, entre famílias, entre mestres. Muitas vezes, quando um barco cerca um grande cardume, chama outro barco amigo ou da família. Há famílias com três barcos.” No caso do “Deus Não Falta”, isto tem acontecido com o “Mar Eterno”, de Josué Coentrão, ex-“Pérola das Caxinas”. No livro “Sardinha” está documentado um momento em que o mestre chama Agonia Torrão, pelo rádio, para partilhar um cardume das Berlengas, suficiente para encher as suas dornas.
Para se chegar ao momento da partilha, todavia, é preciso que os elementos se alinhem. Primeiro, é preciso encontrar o cardume e rezar para que não seja de biqueirão, daqueles estouvados. Helder Luís escapou a algumas situações complicadas por causa deste peixe. “Ia para embarcar e não embarquei. E o barco esteve quase a afundar”, recorda. “A sardinha vem à tona, mas o biqueirão embica, vai para o fundo e, como é estreito, fica preso na malha da rede. Como tem tendência a juntar-se em cardume, e os peixes nadam todos na mesma direção, são capazes de levar um barco atrás.”
Depois, há o lançamento da rede do cerco. Estamos a falar de um monstro com um quilómetro de comprimento e cinco toneladas de peso. Não é um brinquedo, não é um xalavar de bivalves. Uma rede pode custar €100 mil. Se acontecer uma rutura, o prejuízo será grande: pelo conserto e pelo que representa ter um barco parado. É na altura de lançar a rede que os pescadores, o mestre, falam com o peixe. Como diz Luís Diamantino, da Câmara da Póvoa de Varzim, no texto de abertura do livro (um elogio aos pescadores, bem acima do nível literário costumeiro da prosa institucional), os pescadores “ralham com o peixe”, como se ele tivesse uma inteligência coletiva. 
Cercado o peixe, há que trazê-lo para bordo. É o clímax, mas também o momento mais exigente fisicamente. “A minha pesca favorita é a do cerco, porque conserva este lado humano da pesca braçal antiga, que era feita nas lanchas poveiras”, diz Helder Luís, neto de um pescador da Póvoa de Varzim. Há máquinas para puxar as redes, mas as duas dezenas de homens que tripulam as traineiras continuam a ajudar.

Sustentabilidade sem sustento

O esforço nem sempre compensa. Não porque escasseie sardinha. Helder Luís diz que os stocks de sardinha recuperaram, nos últimos anos, graças à gestão e aos limites impostos pelo Governo. O mesmo não se poderá dizer de outros peixes, apanhados com redes de emalhar ou armadilhas ou outras artes de pesca que não o cerco. “Aí, nota-se que o peixe rareia, cada vez mais. Tem havido pouco polvo, por exemplo. Agora, o cerco é a pesca mais sustentável que há, porque só se atinge aquela espécie, não há peixes misturados nos cardumes.” 
A questão é que, havendo sardinha, nem sempre o comércio paga as despesas. “A maior queixa é com a venda. O preço a que é vendido na lota e o preço a que se vende ao público. A desproporção é quase criminosa”, atira. “É triste ver o esforço que foi feito, o dinheiro que se gastou em gasóleo, em redes, em pessoal, todo esse custo, que já vem da época do defeso, em que se gastaram milhares de euros em reparações e manutenção dos barcos, e depois a maior fatia dos lucros não fica para quem pesca.” De acordo com números apresentados em “Sardinha”, para o ano de 2020, a venda em lota da sardinha andou, em média, nos €1,53/kg, enquanto nos supermercados estava a €5,21/kg. 
A sardinha é considerada o petróleo do mar português e terá os seus magnatas — mas não serão, por certo, os pescadores. Naqueles baldes, quando o sol estiver a nascer e eles voltarem para casa, pela zona sul da Póvoa de Varzim, não estarão maços de notas de €500. O balde trará só peixe para alimentar a família. Se o mar deixar.

Sardinha na revista Evasões

“Sardinha: livro dá a conhecer a arte da pesca do cerco”

“Durante quatro anos, a partir do norte de Portugal, Helder Luís desenvolveu um projeto de fotografia documental que culminou numa obra. “Sardinha, o sem fim da pesca do cerco” dá a conhecer essa arte e quem a pratica – em terra e no mar.

Entre 2018 e 2022, Helder Luís – fotógrafo poveiro que também é designer e artista multimédia – desenvolveu um projeto de fotografia documental tendo como alvo a pesca do cerco, uma “das artes de pesca mais importantes em Portugal”. Fê-lo no âmbito da residência artística MAR|PVZ|19/20, centrada na cultura marítima, com o apoio da Câmara Municipal da Póvoa de Varzim, numa viagem que acabou por se alargar a outros portos nacionais. O resultado é o livro “Sardinha, o sem fim da pesca do cerco”, que explica (e mostra) em que consiste esse método, enquanto dá a conhecer o trabalho dos pescadores, as suas rotinas, o seu vocabulário específico, as suas histórias, em jeito de homenagem às tripulações.

Para registar tudo isso, o autor acompanhou pescadores em diversas embarcações, partindo de diferentes pontos do país, e igualmente em terra – porque também aí há homens e mulheres que cumprem tarefas essenciais, do abastecimento à reparação das redes. Nos armazéns, “os barcos do pessoal de terra”, esses trabalhadores asseguram que tudo corre bem no mar.

Em “Sardinha, o sem fim da pesca do cerco”, aprende-se sobre aquele modo de vida, as diferentes fases do processo, os barcos (com nomes como Deus Não Falta ou Virgem Santíssima) e, claro, a sardinha, apresentada como “o petróleo das águas portuguesas”. Esse peixe, outrora associado às mesas mais pobres, foi entretanto elevado a símbolo nacional, presença forte tanto nas festas populares como na indústria conserveira, muito representado também nas lojas de lembranças para turistas.

Em mais de 300 páginas cabem dados tão curiosos como o custo de uma rede do cerco (perto de 100 mil euros; e cada barco tem, no mínimo, duas) ou os diferentes modos de funcionamento dos portos, ao longo da costa (nuns pesca-se de noite, noutros de dia – no de Peniche, por exemplo, os barcos saem às 14 horas em ponto).

Trata-se de uma publicação de capa dura, com fotografias a cores de Helder Luís, enriquecida com ilustrações científicas do biólogo Pedro Salgado. A obra tem ainda contributos científicos de Álvaro Garrido, professor catedrático e diretor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, e de Diana Feijó, técnica do Instituto Português do Mar e da Atmosfera.”

Texto de Carina Fonseca para a edição de 23 de Março da revista Evasões.