Na língua da maré

©2022 Helder Luís

Para assinalar o seu 80.º aniversário, a Mútua dos Pescadores desafiou Abel Coentrão e Helder Luís a conceberem uma obra com gente dentro, que sentisse o pulso do sector marítimo, que lhe perguntasse de onde veio, o que ficou da longa e dura caminhada e se ainda lhe resta mar por onde seguir. Este livro, acreditamos, contribuirá para uma melhor compreensão do peso simbólico, económico, social e político do sector em Portugal. E esperamos, através dele, valorizar as vidas das pessoas e das comunidades, que são, desde o primeiro dia, a razão de ser desta cooperativa de utentes de seguros fundada em 1942.

Segundo o grego Diógenes Laércio, quando perguntaram ao sábio Anacársis se seriam mais numerosos os vivos ou os mortos, este terá redarguido: “Em que categoria pões os navegantes?”. Se saiu desta discussão a famosa máxima que definiu três tipos de homens, os vivos, os mortos e os que andam no mar – que amiúde surge atribuída a Platão em epígrafes de obras sobre temas marítimos –, é algo que não sabemos. O que sabemos é que a frase esquece uma outra categoria de homens, na qual os autores deste livro se incluem: os que vivem voltados para o mar. Saída de uma viagem pela língua da maré, esta obra é uma fiada de crónicas, diálogo entre texto e fotografia sobre algumas das nossas comunidades marítimas. E reflete, a partir de terra, sobre anseios, preocupações, sonhos e realizações
de homens e mulheres que procurámos, ou fomos encontrando, pelo caminho, que vivem nessa estranha circunstância de merecerem a admiração dos vivos, sem que, entre estes, haja quem os queira imitar. Num “país de marinheiros” em que há cada vez menos pescadores, ser do mar vem ganhando novos contornos, que, aqui e ali, tentámos apreender, mas persiste, sobretudo, como marca identitária de muitas biografias. Não sabemos se, como dizem algumas fontes, Anacársis foi o inventor da âncora de duas pontas, mas vimos, neste caminho, o quanto esta nos segura aos lugares onde queremos estar. 

O livro foi apresentado no início de 2023. Uma exposição de fotografia está a ser preparada para acompanhar as várias apresentações do livro.

Há uma espécie de homens-peixe que, se não veem o mar todos os dias, deixam de respirar. Ou dito de outra forma, que só deixam de ir ver o mar quando já não respiram. Esta forma de simbiose herdei-a dos meus antepassados, que até ao meu pai foram pescadores. O meu irmão ainda calça essas botas, que a mim não me serviram, o que me tornou terrenho, fisicamente distanciado da vida que levam para lá da língua da maré: linha de onde os que ficam se despedem dos que vão, aguardando a sua chegada. 
Regresso sempre que posso a essa fronteira mutável, que balança com os humores da lua, do vento, e do mar. Ela é a metáfora de uma vida passada em escuta, de ganha-pão na mão, à procura, na boca salgada da minha gente, de palavras que, presas numa memória de malha apertada, se não esqueçam. É metáfora de uma vida à procura, nessa linha e nessas histórias que a ela arribam, de um cabo de amarração, de uma âncora, que me segure, que nos segure a todos, a um lugar. 
Comecei na praia dos meus avós nas Caxinas, em Vila do Conde, onde há um farol que não alumia nem tem, já, barco algum para alumiar, mas que continua a guiar-nos àquela praia. Ali conheci outros rostos atentos ao mesmo horizonte, e ali fundamos e fundeamos, há quase uma década, uma associação cultural, a Bind’ó Peixe, uma pequena catraia cuja companha vem lançando redes a um património em construção. 
Em 2014, a Mútua dos Pescadores ajudou-nos a recriar, por umas horas, o tempo em que os barcos ainda chegavam à nossa praia, repetindo, com esse gesto, o empenho que coloca na promoção e apoio a uma miríade de iniciativas de valorização da cultura marítima, um pouco por toda a costa onde estão as comunidades que constituem, desde sempre, a sua razão de ser. Para um primeiro encontro, tão marcante ele foi, não poderia ter sido mais feliz.
No início de 2022 recebi um convite para escrever um livro para o 80.º aniversário desta cooperativa de seguros. Desejava-se, à partida, que ele refletisse o universo em que a instituição navega e, após uma primeira ponderação, considerou-se que a obra ganharia se, para além de textos, pudesse incluir fotografia. Helder Luís, artista, designer e fotógrafo que tem, nos últimos anos, produzido e editado importante obra sobre a pesca, a partir da Póvoa de Varzim, onde nasceu e atualmente vive, foi então convidado a participar na conceção e produção deste projeto. 
Cada um à sua maneira, temos sido, promotor e autores, vozes da língua da maré: a Mútua, com as reflexões que produz na sua revista, nas campanhas e nos encontros que promove; Helder Luís, com livros como Atlântico, de 2019, e Sardinha, a publicar brevemente; e eu, que, neste mesmo ano, com a Bind’ó Peixe e outras entidades, concebi e coordenei editorialmente o projeto Rostos da Maré, com histórias de vida que cruzam os territórios de Matosinhos, Póvoa de Varzim e Vila do Conde, de que resultou um livro homónimo editado pela Área Metropolitana do Porto. 
Inspirado em escritores como Bernardo Santareno (Nos Mares do Fim do Mundo), Ramalho Ortigão (As Praias de Portugal) ou Raul Brandão (Os Pescadores), há muito que aguardava uma aberta para me fazer a este mar num registo cronístico, cruzando observações, notas e depoimentos obtidos nos territórios da pesca com reflexões geradas por décadas de dedicação à cultura marítima. Poder fazê-lo, finalmente – mesmo sendo, como se notará, um verde de primeira viagem num banco de pesca frequentado por algumas das primeiras linhas da nossa literatura –, era uma oportunidade que não podia recusar. 
Para este projeto estivemos em várias comunidades da beira-mar de Portugal continental, dos Açores e da Madeira, procurando testemunhos e sinais da relação desses lugares, e dos seus habitantes, com a pesca e com outras atividades marítimas, umas em claro recuo, outras a ganhar espaço na nossa economia. Algumas das vozes, rostos e reflexões que aqui encontrará devemo-las a um labor de apoio à produção por parte da Mútua, detentora de uma invejável rede de contactos por toda a costa, que nos abriu portas. Outras vozes chegaram-nos a partir de trabalho jornalístico que escrevi ou li, em mais de vinte anos de profissão, e da leitura de relatórios e obras sobre economia e ecologia das pescas, história e antropologia marítima, entre outros temas. 
Com este livro, queremos principalmente apontar a atenção de quem o venha a folhear para um país em que o Atlântico, mais do que uma fronteira, para muitos de nós se mantém como extensão natural de um território físico e espiritual.
A safra que desta viagem trazemos, não sendo, de todo, exaustiva, reflete, julgamos, no nosso trabalho documental e criativo, muita da diversidade de experiências que o mar, em Portugal, suscita. 
Limitado pelo tempo disponível e pela vontade de publicar este livro ainda em 2022, no fecho das comemorações do octogésimo aniversário da Mútua, este roteiro acabou por deixar de fora vários portos, uns maiores, outros mais pequenos, onde vive gente e se desenvolvem atividades de inegável contributo para um retrato mais aprofundado da nossa maritimidade, passada e presente. São lugares e comunidades a que esperamos, noutros projetos, poder regressar, à procura de outras vozes da língua da maré.

Abel Coentrão

Este livro é baseado em reflexões, observações, recolhas bibliográficas, entrevistas e trabalho fotográfico realizados por Abel Coentrão (textos) e Helder Luís (fotografia). Ao longo de algumas semanas de 2022, os autores viajaram por vários pontos da costa de Portugal continental e dos arquipélagos da Madeira e dos Açores. Identificados no mapa, os locais por onde passaram foram visitados na ordem pela qual aqui surgem alinhados.

A viagem e consequente produção deste livro resultam de um convite aos autores por parte da Mútua dos Pescadores, que celebra em 2022 o seu 80.º aniversário. O projeto foi financiado por esta cooperativa de utentes de seguros que está, desde a sua génese, ligada às comunidades marítimas do território português. 

A estas, também, deixamos o nosso agradecimento, pelo tanto que nos inspiraram ao longo da viagem até este livro, que é um cais de papel onde cabe um pouco das suas vidas.