Búzio

©2024 Helder Luís

Búzio é uma instalação sonora que pretende refletir sobre a minha relação com a memória e a imensidão simbólica do mar. Este elemento tem sido uma constante na minha vida e obra nos últimos anos. A sua origem remonta à minha infância, em parte por viver junto ao mar, mas também pela sua presença incontornável na comunidade da Póvoa de Varzim.
Como muitos, cresci com histórias do mar e dos homens que o desafiavam. Algures no emaranhado dessas histórias, existiam os búzios, uma coleção inteira deles. Estes búzios, companhia dos meus tempos de criança, pertenciam ao meu avô paterno, João Silva. Quando visitava os meus avós, acompanhando os meus pais, brincava com os búzios que serviam de decoração na sala. Foram trazidos do Brasil pelo meu avô, depois de uma tentativa de emigração em busca de uma vida melhor, como muitos outros poveiros.
Para mim, era uma forma de passar o tempo, afastado das conversas dos adultos. Os búzios transportavam-me para uma espécie de mar longínquo, semelhante a uma memória desvanecida por um denso nevoeiro, ficando tudo meio indefinido e misterioso. Era um mar desconhecido, longe do meu mar familiar, ao pé da praia. Apesar de fugazes, esses momentos ficaram registados em pequenos fragmentos de memórias que hoje se desprendem e materializam em ideias e projetos que me permitem conhecer melhor esse mar antes totalmente desconhecido.

©2024 Helder Luís

Este búzio, comumente conhecido como búzio-tigre (Cypraea tigris), apesar de não ser um dos exemplares mais espetaculares em termos de tamanho ou capacidade acústica, tem um significado muito especial para mim. Foi herdado do meu avô paterno e pode considerar-se como a razão pela qual eu concebi esta instalação. É uma espécie de molusco marinho que pertence à família Cypraeidae e é reconhecido pela beleza distinta da sua concha, que apresenta um padrão semelhante às listras de um tigre, daí o nome “tigris”. As cores podem variar do amarelo ao castanho, com manchas ou riscas escuras distribuídas por toda a superfície, tornando cada concha única. É encontrado em águas tropicais e subtropicais, habitando recifes de coral e fundos marinhos arenosos, onde se alimenta principalmente de esponjas e detritos orgânicos. Esta espécie prefere águas pouco profundas, mas pode ser encontrada em profundidades variáveis, desde a zona entre marés até cerca de 20 metros de profundidade.
As conchas são altamente valorizadas por colecionadores e são frequentemente utilizadas em joalharia e decoração devido à sua aparência exótica. A recolha excessiva das conchas para fins comerciais e decorativos tem levantado preocupações sobre o impacto nas populações naturais desta espécie em certas áreas.

Os búzios são conchas marinhas de beleza e complexidade singular. Estes objetos transcendem o seu aspeto físico, estando a sua forma envolta de significados simbólicos e culturais, enquanto nos fascinam pelo seu misterioso funcionamento acústico. Numa perspetiva simbólica, os búzios são emblemas da feminilidade e fertilidade. São também fundamentais na comunicação e em práticas espirituais de diversas culturas, simbolizando a conexão entre o humano e o divino.
Quanto à sua natureza acústica e sonora, os búzios são fenómenos de ressonância natural. Quando se sopra através do orifício presente numa das suas extremidades, o búzio produz um som profundo e distintivo. Este som resulta da vibração do ar na espiral da concha, servindo a sua forma e composição para amplificar e modular o som de maneira única. Esta experiência acústica revela a sua peculiaridade quando colocamos o búzio junto ao ouvido. Contrariamente ao mito popular, o som que escutamos não é proveniente do mar, mas sim de uma mistura de ruídos ambientais de baixa frequência, normalmente impercetíveis, que são capturados, amplificados e modificados pela concha. Este fenómeno é enriquecido pela nossa perceção psicoacústica, onde a relação natural das conchas com o mar leva a nossa mente a interpretar esses sons como sendo similares ao som do mar. Estas características acústicas fazem do búzio um objeto de interesse tanto cultural quanto científico. É igualmente interessante ponderar o seu papel como elo místico entre o mundo natural e o cultural, entre a ciência e a espiritualidade, entre o tangível e o metafórico.

Búzio foi concebida para ser instalada na capela da Fortaleza de Nossa Senhora da Conceição na Póvoa de Varzim, um espaço que por si só adiciona uma camada cultural, histórica e emocional à experiência. Este ambiente sagrado, aliado à representação sonora, procura criar um espaço de reflexão e contemplação, convidando os visitantes a mergulhar nas profundezas do mar e das emoções humanas que ele evoca.
A capela, devido à sua pequena dimensão, assemelha-se também a uma pequena concha, funcionando como um amplificador do som projetado no seu interior. Este pormenor arquitetónico remete-nos para outros edifícios religiosos, tais como igrejas e catedrais, que foram projetados tendo em mente a importância da música e do canto litúrgico, com a acústica a ser cuidadosamente considerada para suportar e realçar estas práticas. Os materiais de construção, como a pedra e o vidro, e a ausência de mobiliário absorvente, contribuem para uma maior reflexão e menor absorção do som, amplificando-o naturalmente.
A proximidade entre esta capela e o mar propõe também uma justaposição entre a sacralidade do espaço e a imensidão do mar, resultando num ambiente íntimo e imersivo. Este ambiente proporciona aos visitantes uma experiência sensorial única, onde o contraste entre a paz da capela e a dinâmica do oceano realça a coexistência entre o humano e o natural. A escolha deste local não só reforça a relação histórica das comunidades costeiras com o mar, mas também estabelece um ponto de encontro comunitário, incentivando o diálogo sobre a relação intrínseca entre os seres humanos e o mar. Além disso, a capela, tradicionalmente um símbolo de orientação e proteção, ecoa a dualidade do mar como fonte de vida e de desafio, convidando a uma viagem metafórica de introspeção e descoberta.
A instalação apesar de simples e contida, transcende a mera expressão artística, tornando-se uma experiência enriquecedora que se interliga com a cultura e o local.

©2024 Helder Luís

A Fortaleza de Nossa Senhora da Conceição, construída na primeira metade do século XVIII na Póvoa de Varzim, inseria-se numa estratégia de defesa do litoral que promoveu a edificação de construções semelhantes ao longo da costa norte. No seu interior, destaca-se uma capela barroca dedicada a Nossa Senhora da Conceição. Após cumprir a sua função inicial, o “castelo”, como ficou conhecido, entrou em declínio no século XIX, sendo reutilizado para eventos e outros usos públicos, incluindo mercado e escola. Posteriormente, converteu-se num quartel da Guarda Fiscal que permaneceu em funcionamento até 2010, altura em que a Câmara Municipal renovou o forte, transformando-o num espaço de lazer com bares e restaurantes, preservando a maior parte da sua estrutura original. Esta revitalização culminou com a abertura ao público em 2015, dando uma nova vida à histórica fortificação. A capela foi também renovada e encontra-se aberta ao público, mantendo ainda viva a tradição da “Procissão de Velas”. Este cortejo religioso realiza-se na noite de 7 de dezembro, saindo para o exterior da fortaleza e percorrendo as ruas da cidade em honra de Nossa Senhora da Conceição, padroeira de Portugal e da Póvoa de Varzim.

A instalação Búzio explora estas dimensões simbólicas e culturais, através do uso de software especializado para a criação de um algoritmo que simula o som do mar. O algoritmo foi desenvolvido em Max/MSP, utilizando dados da previsão do estado do mar fornecidos pelo IPMA (Instituto Português do Mar e da Atmosfera) e convertidos para XML (Extensible Markup Language) através de um Web Service que filtra informações específicas à zona Póvoa de Varzim.
Os dados, atualizados periodicamente através da internet, incluem parâmetros como o período de maior ondulação, a altura da ondulação, o rumo predominante da onda, a altura significativa das ondas e a temperatura da superfície do mar.
Este conjunto de informações permite que a instalação reproduza o mais aproximadamente possível as condições do mar ao longo do dia. A flutuação destes parâmetros irá influenciar diferentes aspetos do som, criando uma experiência auditiva que remete tanto ao “som” de um búzio quanto ao som do mar. A instalação usa dois altifalantes posicionados discretamente à entrada da capela, ligados a um amplificador que recebe o sinal áudio de um computador ligado à internet.

Na instalação Búzio, deparamo-nos com uma experiência imersiva onde o som do mar é reproduzido não pela realidade tangível das ondas, mas pela abstração tecnológica de um software que pretende sintetizar a sua essência. Paralelamente, a prática popular de escutar o mar através de um búzio remete-nos para uma experiência similar, ainda que enraizada no natural, contrastando com a produção acústica artificial criada por uma máquina. Esta comparação entre uma instalação e o ato de escutar um búzio real convida-nos para uma reflexão profunda sobre as noções de representação e simulação, bem como sobre a dicotomia entre o artificial e o natural. Ambos, a instalação e o búzio, servem como mediadores que nos aproximam da experiência do mar e da particularidade do seu som, sem que este esteja fisicamente presente, operando distintivamente sob um véu de simulação: um pela via da tecnologia e outro pelo engenho da natureza.

A instalação Búzio, representa uma tentativa de capturar e recriar a complexidade e a beleza inerentes ao som do mar, um fenómeno natural. Esta abordagem artificial, embora incapaz de replicar completamente a experiência autêntica do mar, permite uma aproximação sensorial que desafia os limites da nossa perceção. Por outro lado, o búzio, um objeto natural, convida-nos a uma experiência que está intrinsecamente aliada a uma ilusão acústica, permitindo ainda assim uma ligação mais direta e orgânica à natureza. O som que ouvimos ao encostar o búzio ao ouvido é uma simulação natural, produzida não por circuitos eletrónicos, mas pela estrutura da própria concha e pelo ambiente que nos rodeia.
Tanto a instalação Búzio como o ato de levar um búzio real ao ouvido sublinham a capacidade humana de procurar beleza e significado nas representações e simulações do mundo natural. Esta interação entre o artificial e o natural não apenas questiona a complexidade da nossa relação com a tecnologia e o ambiente, mas também celebra o nosso eterno fascínio e respeito pelo mar, um elemento essencial à nossa existência, mas resguardado nos mistérios das suas profundezas.
A instalação não apenas simula a experiência de estar próximo do mar, mas também nos faz refletir sobre a nossa relação com o mundo natural e as formas através das quais interpretamos e recriamos essa relação em contextos culturais e tecnológicos. Frequentemente, no nosso dia a dia, interagimos com representações que nos são apresentadas como substitutos de realidades. Vivemos numa era saturada de simulações, onde a distinção entre o real e o representado se torna cada vez mais difícil, desafiando a nossa compreensão do que é verdadeiramente genuíno. Esta instalação permite-nos mergulhar subtilmente nas profundezas dessa questão, propondo uma meditação sobre como a arte e a tecnologia assumem uma dupla responsabilidade: podem distanciar-nos da realidade ou reconquistá-la através de novas interpretações.

Búzio transcende a sua própria condição física limitada enquanto instalação sonora minimalista, tornando-se um ponto de reflexão sobre a condição humana na era digital. Questiona-se, então, até que ponto as nossas experiências são autênticas ou meras construções e como estas simulações influenciam a nossa perceção da realidade. Ao contemplar essas questões, a instalação explora as complexidades inerentes às representações que construímos e habitamos, convidando-nos a ponderar sobre a verdadeira essência do que consideramos real.

©2024 Helder Luís

A instalação Búzio foi desenvolvida com o software Max/MSP, uma linguagem de programação visual e um ambiente de criação de música e multimédia. Este software (Max) foi inicialmente desenvolvido por Miller Puckette em 1998 no IRCAM (Institute for Research and Coordination in Acoustics/Music). Posteriormente o software foi licenciado à Opcode Systems e a partir de 1997 desenvolvido e comercializado pela Cycling ’74 já como Max/MSP. O ecossistema Max/MSP inclui um ambiente de programação visual (a janela patcher) e um grande número de rotinas (chamadas objetos). Um objeto pode ser visto como uma função que processa dados de entrada para gerar dados de saída. Estes objetos são criados (como objetos visuais) na janela patcher e conectados entre si com cabos de ligação para criar algoritmos. Um programa Max/MSP é chamado de patch.
A secção Max abrange todos os conceitos ligados ao processamento de fluxos de dados de controlo, gerindo todos os dados que não são sinais de áudio ou matrizes de imagem. Os sinais manipulados por esta secção são chamados sinais de controlo. Os objetos (funções) que atuam sobre estes sinais estão conectados entre si com cabos de ligação cinzentos. A secção MSP abrange todos os conceitos ligados ao processamento de fluxos de dados de áudio (sinais de áudio).
No ambiente Max/MSP, os sinais de áudio só podem ser passados e transmitidos entre objetos se o DSP (processamento de áudio digital) estiver ativado, ao contrário dos sinais de controle, que estão sempre ativos. Os objetos (funções) que atuam sobre estes sinais têm sempre um nome que termina com um símbolo de til (~) e estão ligados entre si com cabos de ligação segmentados amarelos e pretos.
O Max/MSP possui uma vasta comunidade de utilizadores e programadores não afiliados à Cycling ‘74 que enriquecem o software com extensões comerciais e não comerciais. Devido a este design extensível, que representa simultaneamente a estrutura do programa e a sua interface gráfica de utilizador (GUI), o Max/MSP tem sido descrito como a língua franca para o desenvolvimento de software de performance musical interativa.
O software desenvolvido para a instalação Búzio obtém os dados da previsão do estado do mar, em particular do comportamento das ondas através da API (Application Programming Interface) disponibilizado pelo IPMA (Instituto Português do Mar e da Atmosfera) no formato JSON (JavaScript Object Notation) e convertidos para formato XML (Extensible Markup Language) através de um Web Service (facilitador da comunicação entre aplicações diferentes). O Web Service começa por selecionar apenas os dados relativos à Póvoa de Varzim acabando por produzir um XML com os seguintes parâmetros: período de pico, associado à ondulação (swell), em segundos; altura da ondulação (swell) em metros; rumo predominante da onda em pontos cardeais (N, NE, E, SE, S, SO, O, NW); altura significativa das ondas em metros; temperatura da superfície do mar em graus celsius. Estes parâmetros permitem que a instalação reflita as condições reais do mar. Cada um desses parâmetros influencia um aspeto específico do som e o resultado é semelhante ao efeito acústico de um búzio, representando uma simulação da realidade. O software comunica periodicamente, através da internet, com o Web Service de forma a obter dados atualizados das condições do mar. 
Búzio apresenta-se como uma instalação sonora com dois canais de áudio (estéreo), não existindo quaisquer outras manifestações físicas visíveis para além dos dois altifalantes no interior da capela e mesmo estes estão colocados o mais discretamente possível, acima do campo de visão do visitante, para permitir uma experiência o mais imersiva possível.