Búzio é uma instalação sonora que pretende refletir sobre a minha relação com a memória e a imensidão simbólica do mar. Este elemento tem sido uma constante na minha vida e obra nos últimos anos. A sua origem remonta à minha infância, em parte por viver junto ao mar, mas também pela sua presença incontornável na comunidade da Póvoa de Varzim.
Como muitos, cresci com histórias do mar e dos homens que o desafiavam. Algures no emaranhado dessas histórias, existiam os búzios, uma coleção inteira deles. Estes búzios, companhia dos meus tempos de criança, pertenciam ao meu avô paterno, João Silva. Quando visitava os meus avós, acompanhando os meus pais, brincava com os búzios que serviam de decoração na sala. Foram trazidos do Brasil pelo meu avô, depois de uma tentativa de emigração em busca de uma vida melhor, como muitos outros poveiros.
Para mim, era uma forma de passar o tempo, afastado das conversas dos adultos. Os búzios transportavam-me para uma espécie de mar longínquo, semelhante a uma memória desvanecida por um denso nevoeiro, ficando tudo meio indefinido e misterioso. Era um mar desconhecido, longe do meu mar familiar, ao pé da praia. Apesar de fugazes, esses momentos ficaram registados em pequenos fragmentos de memórias que hoje se desprendem e materializam em ideias e projetos que me permitem conhecer melhor esse mar antes totalmente desconhecido.
Os búzios são conchas marinhas de beleza e complexidade singular. Estes objetos transcendem o seu aspeto físico, estando a sua forma envolta de significados simbólicos e culturais, enquanto nos fascinam pelo seu misterioso funcionamento acústico. Numa perspetiva simbólica, os búzios são emblemas da feminilidade e fertilidade. São também fundamentais na comunicação e em práticas espirituais de diversas culturas, simbolizando a conexão entre o humano e o divino.
Quanto à sua natureza acústica e sonora, os búzios são fenómenos de ressonância natural. Quando se sopra através do orifício presente numa das suas extremidades, o búzio produz um som profundo e distintivo. Este som resulta da vibração do ar na espiral da concha, servindo a sua forma e composição para amplificar e modular o som de maneira única. Esta experiência acústica revela a sua peculiaridade quando colocamos o búzio junto ao ouvido. Contrariamente ao mito popular, o som que escutamos não é proveniente do mar, mas sim de uma mistura de ruídos ambientais de baixa frequência, normalmente impercetíveis, que são capturados, amplificados e modificados pela concha. Este fenómeno é enriquecido pela nossa perceção psicoacústica, onde a relação natural das conchas com o mar leva a nossa mente a interpretar esses sons como sendo similares ao som do mar. Estas características acústicas fazem do búzio um objeto de interesse tanto cultural quanto científico. É igualmente interessante ponderar o seu papel como elo místico entre o mundo natural e o cultural, entre a ciência e a espiritualidade, entre o tangível e o metafórico.
Búzio foi concebida para ser instalada na capela da Fortaleza de Nossa Senhora da Conceição na Póvoa de Varzim, um espaço que por si só adiciona uma camada cultural, histórica e emocional à experiência. Este ambiente sagrado, aliado à representação sonora, procura criar um espaço de reflexão e contemplação, convidando os visitantes a mergulhar nas profundezas do mar e das emoções humanas que ele evoca.
A capela, devido à sua pequena dimensão, assemelha-se também a uma pequena concha, funcionando como um amplificador do som projetado no seu interior. Este pormenor arquitetónico remete-nos para outros edifícios religiosos, tais como igrejas e catedrais, que foram projetados tendo em mente a importância da música e do canto litúrgico, com a acústica a ser cuidadosamente considerada para suportar e realçar estas práticas. Os materiais de construção, como a pedra e o vidro, e a ausência de mobiliário absorvente, contribuem para uma maior reflexão e menor absorção do som, amplificando-o naturalmente.
A proximidade entre esta capela e o mar propõe também uma justaposição entre a sacralidade do espaço e a imensidão do mar, resultando num ambiente íntimo e imersivo. Este ambiente proporciona aos visitantes uma experiência sensorial única, onde o contraste entre a paz da capela e a dinâmica do oceano realça a coexistência entre o humano e o natural. A escolha deste local não só reforça a relação histórica das comunidades costeiras com o mar, mas também estabelece um ponto de encontro comunitário, incentivando o diálogo sobre a relação intrínseca entre os seres humanos e o mar. Além disso, a capela, tradicionalmente um símbolo de orientação e proteção, ecoa a dualidade do mar como fonte de vida e de desafio, convidando a uma viagem metafórica de introspeção e descoberta.
A instalação apesar de simples e contida, transcende a mera expressão artística, tornando-se uma experiência enriquecedora que se interliga com a cultura e o local.
A instalação Búzio explora estas dimensões simbólicas e culturais, através do uso de software especializado para a criação de um algoritmo que simula o som do mar. O algoritmo foi desenvolvido em Max/MSP, utilizando dados da previsão do estado do mar fornecidos pelo IPMA (Instituto Português do Mar e da Atmosfera) e convertidos para XML (Extensible Markup Language) através de um Web Service que filtra informações específicas à zona Póvoa de Varzim.
Os dados, atualizados periodicamente através da internet, incluem parâmetros como o período de maior ondulação, a altura da ondulação, o rumo predominante da onda, a altura significativa das ondas e a temperatura da superfície do mar.
Este conjunto de informações permite que a instalação reproduza o mais aproximadamente possível as condições do mar ao longo do dia. A flutuação destes parâmetros irá influenciar diferentes aspetos do som, criando uma experiência auditiva que remete tanto ao “som” de um búzio quanto ao som do mar. A instalação usa dois altifalantes posicionados discretamente à entrada da capela, ligados a um amplificador que recebe o sinal áudio de um computador ligado à internet.
Na instalação Búzio, deparamo-nos com uma experiência imersiva onde o som do mar é reproduzido não pela realidade tangível das ondas, mas pela abstração tecnológica de um software que pretende sintetizar a sua essência. Paralelamente, a prática popular de escutar o mar através de um búzio remete-nos para uma experiência similar, ainda que enraizada no natural, contrastando com a produção acústica artificial criada por uma máquina. Esta comparação entre uma instalação e o ato de escutar um búzio real convida-nos para uma reflexão profunda sobre as noções de representação e simulação, bem como sobre a dicotomia entre o artificial e o natural. Ambos, a instalação e o búzio, servem como mediadores que nos aproximam da experiência do mar e da particularidade do seu som, sem que este esteja fisicamente presente, operando distintivamente sob um véu de simulação: um pela via da tecnologia e outro pelo engenho da natureza.
A instalação Búzio, representa uma tentativa de capturar e recriar a complexidade e a beleza inerentes ao som do mar, um fenómeno natural. Esta abordagem artificial, embora incapaz de replicar completamente a experiência autêntica do mar, permite uma aproximação sensorial que desafia os limites da nossa perceção. Por outro lado, o búzio, um objeto natural, convida-nos a uma experiência que está intrinsecamente aliada a uma ilusão acústica, permitindo ainda assim uma ligação mais direta e orgânica à natureza. O som que ouvimos ao encostar o búzio ao ouvido é uma simulação natural, produzida não por circuitos eletrónicos, mas pela estrutura da própria concha e pelo ambiente que nos rodeia.
Tanto a instalação Búzio como o ato de levar um búzio real ao ouvido sublinham a capacidade humana de procurar beleza e significado nas representações e simulações do mundo natural. Esta interação entre o artificial e o natural não apenas questiona a complexidade da nossa relação com a tecnologia e o ambiente, mas também celebra o nosso eterno fascínio e respeito pelo mar, um elemento essencial à nossa existência, mas resguardado nos mistérios das suas profundezas.
A instalação não apenas simula a experiência de estar próximo do mar, mas também nos faz refletir sobre a nossa relação com o mundo natural e as formas através das quais interpretamos e recriamos essa relação em contextos culturais e tecnológicos. Frequentemente, no nosso dia a dia, interagimos com representações que nos são apresentadas como substitutos de realidades. Vivemos numa era saturada de simulações, onde a distinção entre o real e o representado se torna cada vez mais difícil, desafiando a nossa compreensão do que é verdadeiramente genuíno. Esta instalação permite-nos mergulhar subtilmente nas profundezas dessa questão, propondo uma meditação sobre como a arte e a tecnologia assumem uma dupla responsabilidade: podem distanciar-nos da realidade ou reconquistá-la através de novas interpretações.
Búzio transcende a sua própria condição física limitada enquanto instalação sonora minimalista, tornando-se um ponto de reflexão sobre a condição humana na era digital. Questiona-se, então, até que ponto as nossas experiências são autênticas ou meras construções e como estas simulações influenciam a nossa perceção da realidade. Ao contemplar essas questões, a instalação explora as complexidades inerentes às representações que construímos e habitamos, convidando-nos a ponderar sobre a verdadeira essência do que consideramos real.
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