MAR

Texto que Daniel Curval escreveu sobre a MAR, incluído no catálogo, após a sua experiência com a MAR na Capela da Casa de Serralves:

O nosso mar

Paisagem ancestral que nunca envelhece, imenso corpo de água que renasce entre as marés e se revitaliza no exercício continuum das ondas e das temíveis grandes vagas, por isso, o mar talvez seja o elemento do real mais difícil de captar, apesar da sua evidência que inunda os olhos, gerando espanto com a sua misteriosa natureza. 
Uma das mais admiráveis características da identidade do mar é a sua indomabilidade que, desde sempre, provocou um eterno fascínio, estando na origem de várias simbologias e figuras mitológicas de antigas civilizações.
Inevitavelmente, a necessidade de representar o mar seja pela pintura, fotografia ou cinema tornou-se um desafio para os artistas visuais, assim como para escritores, romancistas e poetas.
Na História da Arte, a temática do mar foi, desde que há memória, um imenso oceano onde pintores, fotógrafos e cineastas mergulharam em busca da sua representação imagética entre a imagem fixa – pictórica ou fotográfica – e a imagem em movimento – o cinema – passando pelas composições musicais como a impressionista e simbolista La Mer (1905) de Claude Debussy.
Porém tendo o mar um simbolismo enorme, possivelmente a sua evocação revela-se de forma mais transcendente na literatura e em particular na poesia, pois serve-se do imaginário e da ficção irrepresentável por imagens e sons. 
A prosa poética da mais profunda saudação ao mar encontra-se no primeiro canto do sublime e único livro Os Cantos de Maldoror (1868) de Isidore Ducasse, Conde de Lautréamont “[…] Ó velho oceano, tu és tão poderoso que os homens aprenderam à sua custa. Bem tentaram eles empregar todos os recursos do seu génio, mas foram incapazes de te dominar. […] O medo que lhes inspiras é tanto, que te respeitam. Apesar disso, tu fazes valsar as suas mais pesadas máquinas com graça, elegância e facilidade. Fazes-lhes dar saltos ginásticos até ao céu e admiráveis mergulhos até ao fundo dos teus domínios […] Eu te saúdo, velho oceano!” 1
De lembrar, ainda, a grande aventura de Ulisses no poema épico Odisseia atribuído a Homero, parte da epopeia nas águas do mediterrâneo, entre a mitológica fúria de Poseidon e os sedutores cantos das sereias.
À natureza indomável, mais duas características essenciais unem o mediterrânico mar de Ulisses e o Atlântico mar dos Poveiros. Uma da ordem da física e da química: a água salgada. E uma outra, geográfica, imaterial e possessiva: uma nuance na planetária palavra “oceano” manifesta-se nas emoções das comunidades que vivem à beira-mar, quando nomeiam a paisagem onde diariamente trabalham e contemplam pela expressão “o nosso mar”.
Seria tarefa infindável enumerar todas as pinturas, fotografias e filmes que têm o mar como temática visual ou narrativa em comunidades marítimas. Todavia sugere-se algumas referências como a xilogravura A Grande Onda (c. 1829/33) do mestre japonês Hokusai que tanto influenciou os pintores europeus do século XIX e as várias pinturas do mar e de vagas (entre c.1869/70) de Gustave Coubert, pioneiro do realismo;
Na arte fotográfica The Great Wave (1857) de Gustave Le Gray reconhecido precursor da fotografia de paisagens marítimas e as intemporais Seascapes (1980) de Hiroshi Sugimoto (mais à frente sucintamente confrontadas com a análise à instalação MAR). Sem esquecer o fotógrafo Artur Pastor que dedicou grande parte do seu trabalho, entre as décadas de 50/60, às comunidades piscatórias portuguesas. 
Em Portugal, as primeiras imagens cinematográficas conhecidas pertencem ao britânico Henry Short que em 1896 filmou, em plano fixo, a potência das ondas do mar nas rochas da Boca do Inferno em Cascais. E até chegar à ficção documental Ala-Arriba de 1942, filmado entre a comunidade de pescadores da Póvoa de Varzim, já antes em 1930, Leitão de Barros tinha realizado a etnoficção Maria do Mar, entre os pescadores da Nazaré, ambos importantes filmes no campo da antropologia visual.
Contudo não se poderia deixar de assinalar outros cineastas e filmes, entre o documentário e a ficção, como Terje Vigen/O Lobo do Mar (1916) de Victor Sjöström; Man of Aran/O Homem e o Mar (1934) de Robert J. Flaherty; La Terra Trema (1948) de Luchino Visconti; Stromboli (1950) de Roberto Rossellini; Nazaré (1952) de Manuel Guimarães; Moby Dick (1956) de John Huston e o documentário homónimo do célebre livro A Campanha do Argus (1951) de Alan Villiers que remete para Captains Courageous/Lobos do Mar o filme de 1937 realizado por Victor Fleming em que Spencer Tracy interpreta o papel de um marinheiro de origens portuguesas a bordo de um bacalhoeiro. Para concluir, que não há trainas suficientes para tantas referências, entre muitos outros inesquecíveis filmes da história do cinema, o belíssimo melodrama nas águas do mar Cáspio À Beira do Mar Azul (1936) de Boris Barnet.

A instalação cinemática MAR (2018) de Helder Luís sintetiza-se em três longas sequências de imagens em movimento e sonoridades musicais sobre a experiência do que é navegar no alto mar. Um confronto com a matéria água de uma imponente massa volumosa, por vezes com a forma de uma montanha ou de uma parede, que é necessário subir, descer ou atravessar. Essa massa insubmissa de água, que se transforma em ondas e vagas de matizes negras, é o mais impressionante nesta instalação.
A primeira apresentação pública da instalação MAR ocorreu na Capela da Casa de Serralves (MAC, Porto). 
Estes espaços associados ao elemento religioso ou pelas suas características despojadas são os mais indicados para o recolhimento que a obra MAR exige.  
Ao espectador apela-se a um atento visionamento e disponibilidade para assistir a esta viagem de ida e volta, pois sem essa entrega não é possível fruir toda a intensidade audiovisual e artística da obra. 
Muito pouco, se comparado com o que é exigido na vida de um pescador.
A instalação MAR define-se numa envolvência de navegação no “nosso mar”, através de imagens da densa água salgada, dos seus sons naturais, das vozes dos pescadores, das comunicações via rádio e das ladainhas das mulheres em terra evocando a vertente religiosa e familiar da comunidade piscatória poveira.
A figuração do pescador manifesta-se na sua ausência. Ele está presente, mas nunca se vê, a sua representação traduz-se na viagem, na navegação e no seu trabalho filmado no limite do visível, na escuridão da noite, enquanto se labuta na faina da pesca até à aurora, para de novo seguirmos viagem de regresso a terra.
Uma conhecida lenda sobre o desafio de representação do mar está relacionada com o pintor romântico inglês William Turner, também famoso pelas suas turbulentas pinturas marítimas. Conta-se que certa vez pediu para ser amarrado ao mastro de um barco em dia de tempestade, equipado de tela, pincéis e tintas para dessa forma melhor captar e pintar a natureza rebelde do mar.
O resultado foi Tempestade de Neve – Navio à entrada do porto (1842) que o crítico de arte da época, John Ruskin, defendeu como “uma das afirmações mais grandiosas do movimento do mar, névoa e luz que jamais foram retratadas numa tela.”
Mudam-se os tempos e surgem novas tecnologias, mas as vontades muitas vezes são as mesmas. 
Esta lenda serve para ilustrar a metodologia utilizada por Helder Luís para filmar o mar. Uma pequena câmara e microfone digitais foram afixados à proa de pequenas embarcações de pesca.
Dispositivos tecnológicos que permitiram gravar o modo como o barco navega mar adentro, como sobe e desce as ondas, proporcionando desta forma uma intensa experiência audiovisual de navegação a bordo de um barco de pesca como uma traineira.
A técnica utilizada em MAR possibilitou planos de submersão numa massa de água, junto com os sons naturais e a tremenda banda sonora. Uma peça musical, de inspiração cinematográfica, que acompanha toda a instalação em tom dramático e de um encantamento hipnótico.
Nesta obra o enquadramento visual do elemento água, uma fracção do imenso oceano Atlântico, confronta e exige o nosso atento olhar. Por vezes, a água inunda todo o plano, e noutras, o plano abre-se e vislumbra-se a linha do horizonte.
Esta linha é como uma pauta onde se escreve a imagem ao ritmo da música.
Se para o fotógrafo Hiroshi Sugimoto na sua série Seascapes, iniciada em 1980, a linha do horizonte está sempre ao meio do enquadramento da imagem fotográfica, às vezes difusa, criando desta forma um efeito contemplativo, imbuído de uma abstracção meditativa. Já em MAR a linha do horizonte oblíqua reflecte a agitação da água e a cadência da navegação ao ritmo das ondas. A oscilação visual do plano, isto é, a linha do horizonte que nunca está no meio do enquadramento – ou vê-se a massa de água do mar, ou o azul do céu carregado de nuvens – realça o (des)equilíbrio visual do plano, que acompanhado pela banda sonora são o grande feito audiovisual da instalação.
Na obra MAR de Helder Luís, não se recorre a registos áudio ou vídeo do passado, mas a imagens e sons do mar e da actividade laboral do pescador do nosso tempo.
Este contemporâneo MAR, no futuro, será um documento de arquivo e uma obra única sobre o nosso clássico mar.

1 Seguiu-se a tradução de Pedro Tamen. Fenda Edições, 1988

Daniel Curval, 2019