Sardinha

Sardinha sneak peak.

Este livro resulta de um projeto de fotografia documental que realizei nos últimos quatros anos (2018-2022) sobre a pesca do cerco, a partir do norte do país. Esteve enquadrado na residência artística MAR|PVZ|19/20, dedicada à cultura marítima, e apoiada pela Câmara Municipal da Póvoa de Varzim.

Iniciei este projeto convencido que ia fazer um livro sobre a pesca da sardinha e acabei por fazer um livro sobre a pesca do cerco.
Após as primeiras viagens, ficou claro para mim que a sardinha não chegava para alimentar a fome de peixe durante um ano inteiro.
Inicialmente, estava convencido que poderia realizar este projeto apenas na zona norte, não me afastando muito da Póvoa de Varzim, partindo e regressando ao porto de pesca de Matosinhos.
No entanto, a pesca, e neste caso em particular a pesca do cerco, é uma atividade que está dependente de múltiplos fatores. Um deles, talvez o mais importante de todos, “tem” vontade própria e nos últimos anos decidiu passear-se pela costa e permanecer longas temporadas mais a sul do país, longe dos portos do norte. Falo, naturalmente, da sardinha. Essa movimentação obrigou à “migração” de uma boa parte da frota do cerco, e fui obrigado a segui-la ao longo dos vários portos, desde Matosinhos até ao Algarve. Por isso, tanto a deslocação do peixe como quem o persegue mudaram radicalmente a forma como abordei este projeto.
Só não ia ao mar quando os pescadores ficavam em terra por causa do estado do mar. Quando os barcos estavam por Matosinhos eu podia ir ao mar de domingo a quinta-feira sem grandes dificuldades. Mesmo quando pescavam mais para sul, perto de Aveiro ou da Figueira da Foz, eu continuava a poder juntar-me a eles. Mas se os barcos fossem mais para sul, Peniche, Sines, ou mesmo até ao Algarve, as viagens já exigiam uma outra preparação. Também implicavam fazer planos com os mestres e condensar no tempo o maior número possível de embarques. Esses contratempos tiveram, apesar disso, um resultado positivo.
Um projeto que parecia estar mais circunscrito acabou por ganhar outros horizontes, pois levou-me a visitar e a embarcar na maior parte dos portos de pesca. Essa abertura deu-me uma visão global sobre a pesca do cerco e sobre as diferenças entre a forma de trabalhar dos pescadores do norte e os do resto do país. Também tive a oportunidade de experienciar um mar que não é todo igual ao longo da costa e obriga os pescadores a adotarem outras formas de trabalhar.
Passei uma boa parte desses quatro anos a bordo de barcos de pesca da Póvoa de Varzim, das Caxinas e de Vila do Conde, acompanhando as tripulações em dezenas de viagens, observando, fotografando e filmando.
Apesar de repetitiva, a pesca do cerco não é monótona porque os elementos (naturais) encarregam-se de introduzir um número assustador de variáveis que podem transformar a mais simples tarefa num desafio complexo e perigoso. O mar, ou melhor, o seu temperamento, é a maior variável de todas. Para além do mar, o vento, a chuva e o frio transformam numa odisseia qualquer atividade humana no mar.
Para entender a pesca do cerco é necessário sujeitarmo-nos à repetição, à tentativa e ao erro, estar exposto à chuva, ao vento e ao frio, e suportar o enjoo induzido pelo “rolo” dos barcos quando o mar está mais agitado.
Para fotografar consistentemente uma atividade tão complexa como esta, com tantas variáveis e imprevistos, é necessário estar disposto a suportar as mesmas condições a que os pescadores estão expostos diariamente. Só assim se percebe a dureza da pesca.
Não basta fazer uma viagem de ida e volta numa noite de verão e esperar voltar com um conjunto de imagens representativas do que é a pesca do cerco (algo que se assemelha mais a uma longa empreitada do que a uma simples viagem isolada).
A recompensa (para quem pesca e para quem fotografa) chega nos dias bons, em que se pesca o suficiente para encher o próprio barco, os da família e os dos colegas. Nessas noites todos ganham.
Após ter feito algumas viagens de média duração para outros projetos, permanecendo algumas semanas no mar, não me foi difícil chegar à conclusão que as viagens curtas e separadas no tempo, caraterísticas da pesca do cerco, acabam por ser mais cansativas, pois o corpo nunca se chega a habituar ao balanço do mar.
Nas viagens mais longas há tempo para trabalhar e descansar, normalmente em turnos, e apesar de se estar longe de casa e da família, passado um dia ou dois a privação do sono é menor e o corpo acaba por se adaptar a um meio a que não pertence.
Nas viagens diárias, quase todas as noites são noites perdidas para mim. Nos barcos, raramente durmo. Os mestres insistem oferecendo-me o seu próprio beliche, mas a maior parte das vezes prefiro perder a noite e estar alerta para quando surgir a oportunidade de fotografar. Dormir, só mesmo quando chego a terra e só depois de ver as fotografias dessa noite.

Book spread. First chapter.

Fotografei, ao longo de quatro anos, em diferentes horas do dia e da noite. À noite a luz natural é praticamente inexistente e o meu trabalho está condicionado pela presença da luz artificial a bordo (fluorescente, incandescente, LED, halogênio, etc.), o que resulta em imagens com temperaturas de cor distintas e com ambientes muito particulares. Dada a natureza documental deste projeto, assumi essa realidade, corrigindo aqui ou ali algum desvio mais acentuado durante o processo de edição.
Mesmo depois de uma noite no mar, não consigo descansar enquanto não vejo as imagens e as classifico de forma provisória. Isto porque é a primeira vez que realmente vejo as imagens. É quase como se as revelasse num processo análogo ao tradicional filme de fotografia.
Depois de descansar e ao longo dos dias e semanas, vou revendo as imagens e classificando-as novamente. Curiosamente, encontro outras imagens interessantes e outras, que já tinha selecionado, passam para segundo plano. Isso foi importante para definir o que fotografar nas viagens seguintes e para permitir ter uma noção mais clara dos temas em falta, ou melhorar o registo de um tema já fotografado. Ao longo desses quatro anos também fui melhorando processos e técnicas, o que me fez voltar a fotografar novamente certos momentos.

Book spread. Fish species. Illustrations by Pedro Salgado.

O elevado número de fotografias capturadas (cerca de doze mil) gerou um arquivo enorme, o que tornou esse trabalho de seleção cada vez mais difícil e demorado. Foi necessário criar grupos e categorias de imagens organizados por datas e por palavras-chave, como o local (porto de partida ou descarga, local em terra), o conteúdo da imagem (ações, objetos, técnicas de pesca, momentos da pesca, etc.), o equipamento utilizado, etc.. Esse processo foi essencial para encontrar o sentido narrativo deste livro.
Durante o meu processo de trabalho tento, sempre que possível, não incomodar nem interromper o trabalho dos pescadores. Apesar de procurar a “invisibilidade”, por vezes vejo-me envolvido em pequenas tarefas, quando me pedem ajuda ou quando entendo que posso ser útil. Mas sempre com uma disciplina e uma economia de ação, resultado da minha experiência pessoal. No que toca à fotografia, sou apenas um observador e gosto de pensar que, passado algum tempo, já “desapareci”. A nível pessoal interajo de forma muito mais intensa com as pessoas. Mesmo assim, escuto mais do que falo. Enquanto fotógrafo documental, não peço às pessoas que parem de fazer o que estão a fazer ou que encenem qualquer tipo de ação.
A ação acontece em vários sítios ao mesmo tempo e, por isso, é necessário conhecer bem o barco e entender como é distribuído o trabalho. Na pesca do cerco, apesar de a técnica de pesca usada ser muito semelhante entre os barcos, acaba por haver algumas particularidades, dependendo do tipo e do tamanho do barco.
No mar, nem sempre controlamos quando podemos fotografar. Durante o desenrolar dos acontecimentos posiciono-me de maneira a conseguir observar o trabalho de uma forma interessante, para permitir contar uma história. Apesar disso, não posso descuidar a minha segurança. Estar num barco de pesca é perigoso e fotografar num barco de pesca é ainda mais perigoso. O perigo está presente de forma constante no mar. Faz parte de estar naquele lugar aceitar o perigo com respeito e concentração pelo que se está a fazer. Informa-me e faz-me pensar muito bem no que estou a fazer enquanto fotógrafo. Onde me posiciono, onde coloco os pés e para onde me viro. Há um constante olhar por cima da máquina fotográfica, para dar uma oportunidade à minha visão periférica de me avisar de algum perigo que possa vir na minha direção. Tudo isso faz parte da postura de um fotógrafo a bordo de um barco de pesca.
Com a experiência, fui apurando a percepção do espaço e do modo como o trabalho se desenrola. Mesmo quando enjoava não parava de trabalhar. Continuava a fotografar e a acompanhar o trabalho, pois todos os momentos me pareciam tão fugazes e frágeis. Essa minha atitude gerava uma certa admiração e respeito por parte das tripulações dos vários barcos por onde passei. Para mim era uma forma de os respeitar. Quase todos enjoam em alguma altura. O que realmente faz a diferença é a aceitação de que estamos ali para trabalhar e que não podemos escapar àquele espaço, estando todos obrigados a dar o seu melhor enquanto estão no mar.

Book spread. Infographics explaining the mechanics of this type of fishing.

Quando um barco navega com as luzes exteriores e interiores desligadas, não existe luz a bordo que permita registar o que quer que seja. Na verdade, há muito pouco que possa ser registado durante esses períodos e aproveita-se para descansar. A noite induz um estado de recolha. Pensa-se mais, reflete-se na vida e no porquê de nos sujeitarmos a algo tão agressivo e repulsivo. Somos constantemente lembrados que o nosso lugar não é ali, no mar. Somos apenas visitantes com um visto temporário.
O mar tem a capacidade de nos confrontar com um paradoxo interessante e que parece ser algo experienciado por todos os que o habitam temporariamente. Quando estamos no mar sentimos uma vontade de estar em terra, junto dos nossos, ou apenas no conforto do nosso lar, especialmente quando sentimos o rigor do mar em alturas de muito frio ou chuva. Falta-nos o calor de terra quando o mar nos expulsa e nos envia toda a sua ira. Todavia, quando o mar nos aceita e nos oferece uma passagem segura deixa-nos pertencer àquele espaço, ainda que por breves momentos. Quando voltamos do mar começamos a sentir falta de estar no mar. É uma sensação de inquietude. É uma vontade de desafiar, de explorar, de viajar, de partir.
Ser fotógrafo no mar poderá significar um dia ser pescador. Para já, parece-me suficiente a experiência de embarcar noite após noite e refletir sobre o que é estar num espaço ao qual não pertencemos, mas ao qual, ao mesmo tempo, não conseguimos deixar de querer voltar.
Quando comecei a trabalhar no projeto deste livro e a pensar numa maneira de dar vida editorial à forma como experienciei e documentei essa atividade, tinha plena consciência da relevância deste tema.
A pesca de cerco é das artes de pesca mais importantes em Portugal. No entanto, continua a estar pouco documentada. É uma das poucas “artes” de pesca que nos transporta para a época das lanchas poveiras. Apesar do uso de aladores mecânicos e das gruas, existe todo um conjunto de tarefas a bordo e em terra que ainda são realizados por grupos numerosos de pescadores. As redes, cujas dimensões podem chegar a atingir os mil metros de comprimento e a pesar cinco toneladas, continuam a ser uma das razões para que isso aconteça.
Outro aspeto a que queria dar a devida atenção está relacionado com o que se pesca. Este tipo de pesca tem como alvo não só a sardinha, mas também outras espécies, como a cavala, o carapau e o biqueirão, cuja pesca tem regras diferentes.
Dessas espécies, a sardinha é o peixe mais conhecido e tornou-se o símbolo das festas populares. No mês de Junho chega-se a consumir mais de 10 sardinhas por segundo. Mas a sardinha também foi e é a principal espécie da indústria conserveira portuguesa, que absorbe quase metade das capturas da frota nacional.
Sendo este trabalho sobre a pesca do cerco, também é, obviamente, sobre as tripulações. Por enquanto, ainda são compostas exclusivamente de pescadores portugueses. Pelo menos nos barcos em que tenho viajado continua a ser assim. É importante que assim seja e será uma pena quando deixar de o ser. Há ainda muita cumplicidade nestes homens. Muitas famílias que se conhecem e que formam uma comunidade. Muitos são familiares ou amigos que se cumprimentam de um barco para o outro quando se cruzam no mar. Apesar de toda a competição, disputas, discussões e confusões, ainda existe um forte espírito de camaradagem.

Book spread.

Os poveiros e os caxineiros, sempre orgulhosos das suas origens, gostam de me perguntar de onde sou. Ficam admirados, mas satisfeitos, quando lhes respondo que a família do meu pai é poveira e vivia na Rua 31 de Janeiro, junto à Igreja da Lapa (no coração da comunidade piscatória) e que eu cresci também por ali, perto do mar, quando ficava em casa dos meus avós depois da escola e passeava à tarde pelo cais com o meu avô João Silva.
A organização deste livro corresponde a uma visão pessoal. Além das minhas experiências pessoais, está subjacente uma dimensão essencial do meu trabalho: a partilha de experiências e de testemunhos.
A divisão dos temas por capítulos obedeceu a critérios editoriais, mas também a critérios muito práticos. Desde logo, não há uma narrativa linear simples que retrate o acompanhamento de um barco antes, durante e depois de uma noite de pesca: o grande número de imagens recolhidas nas viagens e o processo moroso de as organizar e selecionar determinaram essa impossibilidade. Foi necessário selecionar imagens de vários momentos, separados pelo tempo e, depois, organizar a narrativa em blocos, de forma a ser mais simples sequenciar essas imagens.
Os capítulos e, consequentemente, a ordem das imagens, criam uma narrativa que segue o dia a dia e a organização da pesca, com o seu calendário e limitações ao longo do ano, organizando-se numa temporada. Desta forma, procuro representar os momentos mais importantes desta “arte” de pesca.
Começo por apresentar não só um ano da pesca do cerco,
desde a paragem durante o defeso até à nova época, como também o dia a dia dos pescadores, com a viagem e o regresso. Depois acompanho os pescadores fora de casa. É uma parte importante, que nos aproxima mais destas pessoas. Na parte final do livro apresento informações técnicas sobre cinco barcos e notas biográficas dos seus mestres, tendo por base entrevistas que realizei com cada um deles. Essa informação também foi útil para ir adicionando detalhes importantes a outros textos do livro.
Os textos não cumprem todos a mesma função. Os que abrem cada tema apresentam um enquadramento mais geral. Os textos que estão junto às imagens documentam o quotidiano da pesca do cerco. Podem ser lidos de forma separada, mas são inseparáveis. Proporcionam uma leitura por camadas e permitem uma interação mais ou menos profunda com o conteúdo livro.
Para mim, os livros são um dos melhores veículos, senão o melhor, para expressar a minha forma de ver e experienciar esta temática. Este processo resume-se ao prazer que tenho de pensar e criar livros, não só como designer, mas como artista. Procuro construir uma linguagem própria, que reflita sobre a minha experiência e que seja, do ponto de vista estético e prático, algo que perdure no tempo e se torne num documento valioso para outras gerações. Mas criar um livro de fotografia documental é um processo exigente, especialmente se formos responsáveis pela maior parte do processo. Neste caso, assumo o papel de fotógrafo e designer gráfico, o que traz uma série de vantagens, mas também cria, obviamente, um maior número de problemas para resolver.
Além disso, decidi incluir neste livro desenhos e ilustrações, tal como já fiz noutros projetos editoriais sobre o mar, pois permitem visualizar a complexidade desta “arte” de pesca. Representam as diferentes técnicas de pesca, as espécies de peixe e os diferentes tipos de embarcações. Observados de fora, as redes e o processo do cerco são complexos e densos. Depois de entendidos, acabamos por admirar a beleza desta “arte” e a destreza e técnica dos pescadores.

Espero conseguir transmitir o que é a vida destes pescadores. Este é o meu contributo para o reconhecimento desses homens que passam muitas noites à procura de um peixe que teima em lhes escapar e regressam muitas vezes cansados, desanimados e sem sustento para, na noite seguinte, voltarem ao mar e fazerem tudo de novo.

Book spread. Infographics presenting the different boats present in this type of fishing,

Este é um registo no limite do tempo. Dificilmente se poderá continuar a pescar como se tem pescado e isso tem e terá cada vez mais impacto na comunidade piscatória. Além disso, a mão de obra para trabalhar nos barcos escasseia. Inevitavelmente, a pesca do cerco irá mudar e evoluir. Mas continuará a ser, como sempre foi, uma luta entre a sobrevivência de uma espécie e a subsistência da outra.
Este trabalho não teria sido possível sem a ajuda de todos os armadores, mestres, pescadores e trabalhadores da pesca do cerco com quem tive o prazer de me cruzar, por isso devo-lhes um sincero agradecimento. Este livro também é deles. Ao longo dos quatro anos em que estive envolvido neste projeto, acolheram-me, protegeram-me e ensinaram-me muito sobre o mar e a pesca. Durante o processo de criação deste livro, estiveram sempre disponíveis para responder a todas as questões e esclareceram todas as dúvidas que tive. Penso que estavam genuinamente interessados em ver o seu trabalho devidamente retratado.

Continuo a perseguir o objetivo (fugaz) de documentar não só o que acontece num determinado momento, mas também transmitir aquilo que senti em cada momento desta “viagem”. Quero que as minhas imagens sejam capazes de sugerir o movimento do barco e o estado do mar. Se cada leitor conseguir sentir os salpicos da água salgada e as escamas de peixe a voar, um dos objetivos deste livro estará realizado.

Foi uma longa viagem, interrompida por restrições que afetaram a vida e o trabalho de todos.
Tal como na pesca, o mais importante é ir para o mar.
Ficar em terra não é uma opção.

Para saber mais sobre este projeto, visite a página do projeto.

Autoria: Hélder Luís
Prefácio: Álvaro Garrido, Luís Diamantino
Ilustrações científicas: Pedro Salgado
Apoio científico: Diana Feijó (IPMA)
Edição e apoio institucional: Câmara Municipal da Póvoa de Varzim
Impressão: Norprint
Distribuição: Blue Book
Formato: 27,7 x 22,5
Páginas: 322
ISBN: 978-989-53927-0-4